Recentemente, tomou-se conhecimento de artigo veiculado em diversos sites e na imprensa, onde afirmava-se que o Exército havia ganhado na justiça o direito de expulsar militares com problemas de saúde. Por isso, decidiu-se redigir o presente artigo, afirmando veementemente que o EXÉRCITO NÃO GANHOU NA JUSTIÇA O DIREITO DE EXPULSAR MILITARES COM PROBLEMAS DE SAÚDE.
ENTENDA O QUE REALMENTE ACONTECEU
Para que você entenda de forma bem clara, a União representa as Forças Armadas no processo judicial. E a União é defendida pela Advocacia Geral da União – AGU. Com isso, assim como os militares possuem seus advogados pessoais que os defendem no processo judicial, as Forças Armadas também possuem o seu, qual seja, a AGU.
Ocorre que, como advogados, a AGU emite pareceres técnicos, para orientar juridicamente as Forças Armadas. Trata-se, portanto, de orientação jurídica unilateral, dos advogados da própria Forças Armadas.
Assim como as Forças Armadas, os militares podem solicitar orientação jurídica de seus advogados, que emitirão pareceres jurídicos. A diferença é que a orientação do advogado de um militar será direcionada, obviamente, àquele militar. No caso dos pareceres da AGU, por se tratar de órgão que faz parte da administração pública, diversas Unidades Militares das Forças Armadas poderão seguir tal orientação jurídica.
O Parecer: orientação segundo análise unilateral
Isso tudo gera grande impacto no meio militar. Pois, causa diversas discrepâncias jurídicas contrárias à legislação processual, aos princípios constitucionais da Separação dos Poderes e Segurança Jurídica. A exemplo disso, tem-se a situação atual gerada pelo parecer proferido pela AGU, citado neste artigo. Ele afirma que os militares reintegrados judicialmente antes da Lei 13.954/19 poderão ser licenciados ex officio, mesmo que vigente a decisão judicial que determinou.
A Lei 13.954/19, criada na gestão do governo Bolsonaro, reforçou o instituto do Encostamento do militar temporário, que se torne incapaz temporariamente para o serviço militar. Tal instituto do Encostamento, famigerado e rechaçado pelo Poder Judiciário até a presente data, diga-se de passagem, determina o desligamento do militar dos quadros da ativa, para manter apenas o direito ao tratamento médico, sem remuneração.
Com isso, a AGU afirmou que, nos casos dos militares reintegrados por decisão judicial antes da Lei 13.954/19, a Força poderá ex officio e sem depender da apreciação do Poder Judiciário, licenciar o militar temporário mesmo incapaz e colocá-lo no sistema do encostamento.
Veja trechos do parecer da AGU – Parecer n. 00199/2024/CONJUR-EB/CGU/AGU:
Por isso, deixando cristalina todas as informações veiculadas na imprensa e artigos equivocados, não se trata de determinação da JUSTIÇA. Antes, as Forças Armadas estão utilizando parecer UNILATERAL da AGU para descumprir decisão judicial que determinou a reintegração de militar.
A SEPARAÇÃO DOS PODERES
Todas as vezes que a administração pública age de maneira arbitrária, contrária às disposições legais e constitucionais, cabe ao administrado, ou seja, eu e você, buscar socorro junto ao Poder Judiciário.
Sem dúvidas, permeia no ordenamento jurídico o princípio fundamental da nação, qual seja, a separação dos poderes!
A separação dos poderes tem como premissa a tripartição das funções do Estado, já que injusto e perigoso atribuir a um indivíduo o exercício do poder pleno, de legislar, executar (administração pública – Forças Armadas) e de julgar.
Essa classificação surgiu há tempos, por meio de Montesquieu, porém, com antecedentes na obra de Aristóteles e Locke. Em toda a sua obra, Montesquieu sempre demonstrou preocupação com esferas de delimitação de competências, para não atribuir poder demasiado a órgãos individuais, de forma que sobressaia sobre o outro, a fim de gerar risco à própria democracia basilar do Estado.
Segundo tradução de Pedro Vieira Mota:
Estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um mesmo corpo de principais ou nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer as leis; o de executar as resoluções públicas; e o de julgar os crimes ou as demandas dos particulares. (MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O Espírito das Leis. Introdução, trad. E notas de Pedro Vieira Mota. 7ª ed. São Paulo. Saraiva: 2000.)
Para a situação em questão, o parecer da AGU demonstra flagrante ofensa a separação dos poderes e alto risco de desiquilíbrio da individualidade das funções estatais. Ao determinar que a administração pública (Forças Armadas) descumpra deliberadamente ordens judiciais, e vale destacar, em larga escala, sem dúvidas gera insegurança jurídica à própria função tripartida do Estado: legislativo, executivo e judiciário.
E diante de tal arbitrariedade, novamente caberá ao Poder Judiciário se manifestar sobre e fazer valer a função primordial do Estado, enquanto função individualizada, a quem compete exclusivamente a atribuição jurisdicional.
A LEI 13.954/19 NÃO SE APLICA A TODOS OS CASOS
Lado outro, a Lei 13.954/19, que modificou consideravelmente o regime e legislação militar (Lei 6.880/80, sobretudo), também não pode simplesmente retroagir para alcançar fatos consumados na vigência da Lei anterior, por exemplo.
Por isso, cabe a função jurisdicional, ou seja, Poder Judiciário, julgar cada caso de maneira individual.
A irretroatividade da Lei nova é abordada pela Constituição Federal. É um direito individual e uma garantia fundamental, da qual o Estado (compreendido sobretudo o executivo – Forças Armadas) deve respeitar.
O art. 5º, da Constituição Federal, traz a determinação de que a “lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (XXXVI).
Aplicar deliberadamente a Lei nova, qual seja, 13.954/19, a todos os militares reintegrados judicialmente antes de sua vigência, pode encerrar violação direta ao dispositivo citado, cuja hermenêutica jurídica, com base nas provas processuais, cabe exclusivamente ao Poder Judiciário.
Pense na hipótese do militar já periciado no procedimento judicial antes da Lei 13.954/19, cuja incapacidade definitiva e relação de causa e efeito tenham sido comprovadas. A decisão precária que determinou a reintegração tem como base prova inequívoca e imparcial, produzida pelo órgão jurisdicional máximo do Estado, que tem a função exata de aplicar a Lei e a Constituição aos casos concretos.
Não se pode, nem se deve descumprir deliberadamente uma decisão de tutela de urgência, que teve o seu deferimento pelo Poder Judiciário exatamente pelo risco iminente de dano irreparável ao direito perquirido.
EXISTE SIM COMO BUSCAR UMA SOLUÇÃO PARA TAL ARBITRARIEDADE
Outro ponto que a mídia destacou, foi de que não há o que ser feito em relação ao parecer da AGU e a exclusão do militar reintegrado judicialmente, por incapacidade, pelas Forças Armadas.
Como exaustivamente explanado, quaisquer atos praticados pela administração pública que violem direitos e garantias podem e devem ser revistos pelo Poder Judiciário.
Considerando que a situação é extremamente específica, já que o parecer da AGU determina a exclusão de militares reintegrados por decisão judicial, a medida jurídica que se cabe dar-se-á no mesmo procedimento judicial.
Claro! A decisão de tutela de urgência, liminar ou antecipada, que determinou a reintegração do militar incapaz, foi deferida com base em cognição jurisdicional, pautada na probabilidade do direito e no risco iminente de dano irreparável ou de difícil reparação, ou mesmo na fumaça do bom direito, ainda que de forma precária e provisória.
A nova exclusão do militar no curso do procedimento, de forma unilateral e sem a interpelação judicial, cabe imediata repreensão e análise por parte do Poder Judiciário no mesmo procedimento.
Não se sabe, até a presente data, de decisão proferida em Tema Repetitivo ou em Repercussão Geral pelos Tribunais Superiores, autorizando a aplicação deliberada e imediata pela administração pública, da Lei 13.954/19 aos militares reintegrados por decisão judicial.
Portanto, o Poder Judiciário poderá coibir tamanha arbitrariedade e ofensa a todos os princípios e conceitos expostos acima, bem como às demais questões jurídicas e probatórias relacionadas ao caso específico, posto a julgamento.
CONCLUSÃO
Como se viu, o EXÉRCITO NÃO GANHOU NA JUSTIÇA O DIREITO DE EXPULSAR MILITARES COM PROBLEMAS DE SAÚDE, como afirmado em diversos artigos e mídias espalhados na internet.
Tem-se, na verdade, parecer emitido pela AGU, por meio do órgão consultivo da administração pública, que conclui segundo o seu raciocínio jurídico sobra a possibilidade de exclusão do militar reintegrado por decisão judicial antes da Lei 13.954/19.
Viu-se que o Estado democrático possui funções independentes e individuais, que atuam de maneira autonômica, mas num sistema de controle recíproco. Por isso, cabe ao Poder Judiciário a competência jurisdicional do Estado, razão pela qual o descumprimento das decisões impostas por esta função estatal viola diretamente a separação dos poderes.
Além disso, que a Lei 13.954/19 não se aplica de forma deliberada e sem a devida averiguação judicial a todos os casos, já que fatos ocorridos e consumados na vigência da Lei anterior afasta a aplicação da Lei nova, pela irretroatividade resguardada pela Constituição Federal.
Portanto, tais arbitrariedades deverão ser levadas para correção do Poder Judiciário. A arguição deve ocorrer no mesmo procedimento que a decisão judicial havia sido deferida. Afinal, é necessária a discussão sobre o direito aplicável a cada caso concreto.
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Texto escrito por Dra. Andressa Honjoya
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